Estrada no parque não é o mesmo que estrada-parque!
De tempos em tempos, o fantasma da Estrada do Colono ressurge para assombrar o Parque Nacional do Iguaçu, um dos mais antigos do País - criado em 10 de janeiro de 1939 - e o maior Parque da ameaçada e fragmentada Mata Atlântica Brasileira, declarado como Patrimônio Natural da Humanidade.
Ameaça esta que, quase sempre, surge convenientemente em período pré-eleitoral pois, num Estado em que a motosserra corre solta, nada melhor que levantar a bandeira do desenvolvimento rural (in)sustentável, pregando a ideia de que “o Brasil tem a oportunidade de adotar um novo modelo de desenvolvimento econômico sustentável, mas precisa superar a visão de que somente afastando homem e natureza é que se garante a preservação” (frase do relator deputado Nelson Padovani, da Comissão Especial instituída para proferir parecer ao Projeto de Lei nº 7.123, de 2010, do deputado Assis do Conto, que institui a Estrada-Parque Caminho do Colono, no Parque Nacional do Iguaçu).
Na verdade, faz tempo que sabemos que só esse afastamento garante a preservação. André Rebouças já dizia, em 1876, que “a geração atual não pode fazer melhor doação às gerações vindouras do que reservar intactas, livres do ferro e do fogo” as áreas de significativa riqueza natural. Demorou muito, mas a sensatez de André Rebouças acabou consolidada na Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (Lei nº 9.985, de 2000), que cria dois grupos de áreas protegidas: as Unidades de Proteção Integral, que têm como objetivo preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais – livres do ferro e do fogo, como queria Rebouças; e as Unidades de Uso Sustentável, com o objetivo básico de compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais.
O Parque Nacional do Iguaçu está no primeiro grupo e preserva um dos últimos remanescentes significativos e em bom estado de conservação da Mata Atlântica do Interior do Brasil. Mais ainda, essa floresta envolve as Cataratas do Iguaçu e protege uma parte ínfima do pobre rio Iguaçu que, ao longo de seu trajeto recebe dejetos humanos, lixo, agrotóxico, solo despregado e tudo o mais que somos capazes de produzir e lançar em suas águas. Mesmo tão maltratado, o rio ainda nos brinda com o grandioso espetáculo das Cataratas que, a cada ano, atrai milhões de turistas. Um conjunto tão magnífico que se tornou a primeira Unidade de Conservação do Brasil instituída como Sítio do Patrimônio Mundial Natural pela UNESCO, no ano de 1986. Ou seja, é bem comum a toda a humanidade, um dos raríssimos laços que nos une enquanto espécie global.
Para manter a integridade do Parque e a dignidade do País como detentor de um Patrimônio da Humanidade, foi preciso muito esforço. Um deles, aparentemente simples, foi fechar, definitivamente, uma estrada aberta ilegalmente em 1954 por máquinas das empresas colonizadoras da região, seguindo um caminho (segundo o Grande Dicionário Houaiss, caminho é uma porção mais ou menos estreita de terreno entre dois lugares por onde alguém pode seguir) usado, antes disso, por moradores de povoados lindeiros ao parque, para fins diversos. O fechamento se deu no momento em que o Departamento de Estradas de Rodagem do Paraná (DER) se preparava, em 1986, para pavimentar a estrada. A estrada cortava o parque em duas partes e causava danos significativos à biodiversidade, amplamente descritos e constatados em estudos realizados ao longo destes quase 30 anos.
Houve, também, ao longo desse período, diversas tentativas de reabrir a estrada mas, nos últimos dez anos, com maior empenho de todos os envolvidos nos cuidados do parque a natureza fez sua parte e cobriu a estrada que, de cima, já nem pode ser vista. Parecia que, finalmente, reinaria paz na floresta, ao menos nessa pequena parte do território nacional.
Que nada! Desde 2011, o legislativo federal procura uma saída para voltar à carga. Como não existe mais a estrada, acharam uma solução “dois em um”: construir uma estrada-parque chamada Caminho do Colono no Parque Nacional do Iguaçu. Mais ainda, como não existe a expressão estrada-parque nem na gramática brasileira, resolveram inovar propondo uma alteração no artigo 14 da lei que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, onde são definidas as categorias que compõe o grupo de unidades de conservação de Uso Sustentável, criando uma nova: a estrada-parque.
Segundo a redação proposta pelo Projeto de Lei do deputado Assis do Couto, estrada parque é uma via de acesso dentro de uma unidade de conservação cujo formato e dimensões são definidos pelos aspectos históricos, culturais e naturais a serem protegidos. Diz o Projeto de Lei:
“§1º A estrada-parque tem como objetivo principal a integração do homem à natureza através do turismo ecológico, a proteção de aspectos histórico-culturais, a promoção da educação ambiental e do desenvolvimento sustentável, além de outros a serem definidos no ato de sua criação.
§2º A gestão se dará por um Conselho Consultivo presidido pelo órgão responsável pela administração da UC em que está inserida e que auxiliará na elaboração de seu Plano de Manejo, podendo ser estabelecida parceria público-privada (PPP).
§3º Sua implantação deverá se dar em parceria com o Estado em que está localizada a UC mesmo que esta seja federal.
§4º Para a implantação de uma Estrada Parque, deverão ser obedecidos, no mínimo, aos seguintes requisitos:
I – estudo prévio de impacto socioambiental, cultural e econômico devendo ser considerada a opinião das comunidades lindeiras à UC;
II – implantação de guaritas para controle de acesso de veículos e pessoas;
III – pórtico com indicação de dados sobre a estrada e os recursos naturais locais;
IV – controle do horário de acesso, do número e características dos veículos;
V - pavimentação com que impeça impermeabilização do solo, vedado o asfaltamento de qualquer parte do percurso;
VI – sinalização rodoviária e turística;
VII - utilização de redutores de velocidade ao longo do trecho e limite de velocidade abaixo do estabelecido pela legislação vigente;
VIII - instalação de mirantes naturais e pontos de parada;
IX – facilitadores de passagens para os animais, se necessário.”
II – implantação de guaritas para controle de acesso de veículos e pessoas;
III – pórtico com indicação de dados sobre a estrada e os recursos naturais locais;
IV – controle do horário de acesso, do número e características dos veículos;
V - pavimentação com que impeça impermeabilização do solo, vedado o asfaltamento de qualquer parte do percurso;
VI – sinalização rodoviária e turística;
VII - utilização de redutores de velocidade ao longo do trecho e limite de velocidade abaixo do estabelecido pela legislação vigente;
VIII - instalação de mirantes naturais e pontos de parada;
IX – facilitadores de passagens para os animais, se necessário.”
Da proposta – diga-se de passagem, objeto de grande discussão internacional, pela dificuldade de compatibilização do conceito de “estrada” com o conceito de “parque” - e que passa a valer para qualquer unidade de conservação do país, pode-se deduzir que:
a) não é uma categoria em si, uma vez que se presume que está inserida em outra UC, como diz o § 2º;
b) permite a interferência estadual em unidades de conservação federais (§ 3º);
c) dispensa avaliação de impacto ecológico (obrigatório para UCs de proteção integral);
d) inclui outras obras como “mirantes naturais” e pontos de parada (VIII); e
e) no caso de a fauna não entender as placas e avisos, inclui facilitadores de passagens para os animais (IX).
b) permite a interferência estadual em unidades de conservação federais (§ 3º);
c) dispensa avaliação de impacto ecológico (obrigatório para UCs de proteção integral);
d) inclui outras obras como “mirantes naturais” e pontos de parada (VIII); e
e) no caso de a fauna não entender as placas e avisos, inclui facilitadores de passagens para os animais (IX).
Contradições que parecem não incomodar o deputado que, imediatamente, apresenta o Artigo 2º (verdadeiro objetivo da confusão legal estabelecida até agora), sem sequer se preocupar com o que determinam no artigo 1º, especialmente no que diz respeito a realizar, no mínimo, o tal estudo de impacto socioambiental:
“Art. 2º Fica criada a Estrada-Parque Caminho do Colono no Parque Nacional do Iguaçu, a ser implantada no histórico leito do Caminho do Colono, situado entre o km 0 (zero) e o km 17,5 (dezessete e meio) da PR 495, antiga BR 163.”
Como o “leito” do caminho do colono não existe desde 1954 e, ao longo do tempo foi coberto por camadas de terra e cascalho trazidos de fora do parque e, atualmente, está coberto pela floresta, o correto seria dizer que querem arrombar o parque ao longo de 17,5 quilômetros, cortando-o em duas partes e alterando seus limites. É bom lembrar que a lei que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação diz, expressamente, no artigo 22 que:
....”§ 5º - As unidades de conservação do grupo de Uso Sustentável podem ser transformadas total ou parcialmente em unidades do grupo de Proteção Integral, por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta estabelecidos no § 2o deste artigo.”
O contrário não está previsto.
Além disso, o mesmo artigo estabelece em seu § 7o que ...”A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica.”
Se o Parque Nacional do Iguaçu vai ser cortado ao meio, terá seus limites reduzidos e isso só poderia ser feito por lei específica.
Ignorando tudo isso, o Projeto de Lei do deputado Assis do Couto prossegue impávido:
Ignorando tudo isso, o Projeto de Lei do deputado Assis do Couto prossegue impávido:
“Art. 3º A Estrada-Parque Caminho do Colono tem por objetivos:
I – promover a educação e a interpretação ambiental;
II – fomentar o desenvolvimento rural sustentável das Regiões Oeste e Sudoeste do Paraná por meio do turismo ecológico e rural;
III – garantir a integração e a interação responsável e sustentável da população das Regiões Oeste e Sudoeste do Paraná com o Parque Nacional do Iguaçu;
IV – assegurar a efetivação da segurança nacional necessária em área de fronteira.”
I – promover a educação e a interpretação ambiental;
II – fomentar o desenvolvimento rural sustentável das Regiões Oeste e Sudoeste do Paraná por meio do turismo ecológico e rural;
III – garantir a integração e a interação responsável e sustentável da população das Regiões Oeste e Sudoeste do Paraná com o Parque Nacional do Iguaçu;
IV – assegurar a efetivação da segurança nacional necessária em área de fronteira.”
É difícil dizer o que é mais assustador: uma unidade de conservação de proteção integral ser obrigada a fomentar o desenvolvimento rural sustentável ou a assegurar a efetivação da segurança nacional em área de fronteira. É claro que a presença do Parque oferece serviços essenciais à agricultura, contribuído para assegurar qualidade à produção, mas é difícil imaginar como a “estrada-parque” irá “fomentar o desenvolvimento rural sustentável”.
No caso da “efetivação da segurança nacional em área de fronteira”, é bom lembrar que a “estrada-parque” passa a mais de 40 quilômetros da fronteira e que, tanto na região Oeste quanto na região Sudoeste, existem meios bem mais simples e diretos de chegar à fronteira. Como o Exército Brasileiro não é citado entre as instituições e pessoas ouvidas pela Comissão Especial, é difícil saber se uma estrada cortando o Parque Nacional do Iguaçu faz mesmo parte das estratégias de segurança nacional ou se trata de uma cortesia dos deputados.
O fato é que no artigo 4º do Projeto de Lei o deputado tem o cuidado de incluir novamente os veículos oficiais do Exército Brasileiro, além de inexplicáveis caminhonetes, entre os que poderão circular pela estrada. Resta saber a que veículos oficiais do Exército o artigo se refere, em se tratando de segurança nacional: jeeps, tanques, blindados, caminhões para transporte de tropas ou carros de combate?
O artigo 6º cria um problema insolúvel porque, enquanto a Lei do Sistema de Unidades de Conservação estabelece, no § 2º do artigo 11 que “a visitação pública está sujeita às normas e restrições estabelecidas no Plano de Manejo da unidade, às normas estabelecidas pelo órgão responsável por sua administração, e àquelas previstas em regulamento”, o deputado estabelece que “o Plano de Manejo do Parque Nacional do Iguaçu se ajustará às disposições desta Lei”.
Enfim, não restam dúvidas sobre as intenções do PL nº 7.123, de 2010. Trata-se de abrir uma estrada no Parque Nacional do Iguaçu e garantir, por lei, a abertura de outras estradas em outras unidades de proteção integral. Além disso, ao contrariar Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (Lei nº 9.985, de 2000) gera controvérsias que, a julgar pelo comportamento do Legislativo que diz respeito à conservação da natureza, vão pesar a favor de seu desmantelamento.
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS)
Rede de ONGs da Mata Atlântica - RMA
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Guyra Paraguay
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